quinta-feira, 1 de abril de 2021

Março...

Elis e Tom cantam lindamente:

"É o pau, é a pedra, é o fim do caminho....

São as águas de Março fechando o verão...."

Ahhh Março! Março tem um sentido ímpar na minha vida. Um misto de doçura e amargura, de dor e delícia, de alegria e tristeza. Trás uma imensa fusão de sentimentos....i-men-sa. E, apesar das circunstâncias, vou registrar esses sentimentos aqui, pra desabafar!

Março já tem um sentido de "começo" por aqui né!? Não que a gente não faça nada em Janeiro e Fevereiro. Inclusive onde trabalho são nossos meses mais intensos, mas é aquela coisa de passar período de férias, verão, carnaval e engrenar...no Brasil engrenamos em Março! Quem é do samba enredo (não é muito meu caso...rs) vai entender melhor o que estou dizendo.

Março também me trás esse sentido de responsabilidade, de aprendizado, de ciclo....o ciclo da maternidade. Minha primeira filha nasceu em março, bem no meio, e esse mês trás pra mim esse poder e essa vulnerabilidade. Porque maternar é um poder, bem no sentido de ser heroína mesmo, mas por outro lado nos faz questionar diariamente nossas escolhas. São desafios que vão mudando a cada ciclo. Cada ano de aniversário dela é um ano a mais de maternidade minha e somam-se 365 dias de novos conhecimentos sobre o "ser mãe". 

Março também deu início a um período de transformação, mundial, social, familiar, pessoal. Março de 2020 entramos nesse contexto de isolamento - do qual infelizmente AINDA não saímos - devido a pandemia referente ao covid. Foi dolorido, está sendo dolorido e ainda será dolorido por mais um tempo. Mudamos o modo de vida. Fomos obrigados a nos afastar das pessoas. Ficamos restritos em nosso direito de ir e vir. E, no caso do Brasil, com uma política fracassada que demonstra pouca preocupação com "as gentes todas"....estamos (e uns muito mais que outros) passando por isso da pior forma possível. Em resumo, Março de 2020 se estendeu a esse Março de 2021, com mais de 300 mil vidas perdidas, também pela negligência.

Esse ano, Março não deixou de me surpreender. No entanto, desta vez quis me deixar uma cicatriz, no coração, na memória, na alma, na consciência....em tudo que pôde. Não vou contar toda a história, pois ela é longa - tem mais de 40 anos - e, quem me conhece sabe das minhas tentativas de aproximação dos meus tios (ela irmã da minha mãe e, ele esposo dela). Mas vou contar algumas coisas, porque falar disso me trás algumas certezas e ajuda a doer menos. 

Depois de muitos anos de convivência familiar, muito próxima inclusive, a situação começou a mudar. Começou mudar há uns 15 anos, piorou há 10 e entramos num silêncio absoluto há 5. Com o silêncio a quase certeza do desenvolvimento da doença genética. Por outro lado os murmúrios da negação - "não é a doença da sua avó", "não estou doente e, pare de falar que estou", "ela tem outra coisa diferente, não é genético"....etc. Uma rotina sem fim de médicos, sem mencionar a doença da mãe (minha avó), que é uma doença rara e que tem histórico familiar. As afirmações de que todos os médicos eram ruins, até encontrar um que aceitasse o que eles queriam. Encontraram! O diagnóstico é incoerente e mentiroso, mas ele dava medicamentos e, isso sustentou uma falsa ideia de tratamento nos últimos anos. Sem nenhuma terapia acessória, nada, NE-NHU-MA intervenção de outros profissionais! 

A doença neuro degenerativa a fez definhar muito de 2017 pra cá. Acompanhava de longe essa evolução quando a via sem querer no nosso local de trabalho - que é o mesmo e, vivia perguntando para os conhecidos se eles tinham alguma "informação" pra mim. O pouco que eu sabia, tinha que investigar. Aí veio a outra doença. Em 2018 ele descobriu um câncer e o afastamento de familiares e amigos trouxe consigo essa solidão de não ter pra quem contar, não ter com quem contar, pois não era seguro se mostrar vulnerável. Além da presunção de achar que poderia simplesmente passar ileso por isso. Imagino que o câncer foi consumindo a alegria dele de viver por cerca de um ano e meio até que, resolveu ceder, contando que precisava de ajuda e assim, realizou uma cirurgia muitíssimo bem sucedida em 2019. Mas, com ela vieram os fantasmas, os medos, a sensação de se sentir impotente diante das próprias escolhas. 

Apesar de exames que demonstravam que estava "livre" do câncer e, de ter em volta pessoas que queriam ajudar (inclusive eu), a desconfiança sempre foi maior. O medo de metástase, medo de morrer, medo de ver a esposa cada vez mais dependente, medo de depender dos outros, o medo diário de perder o emprego, medo da tecnologia... Muitos medos que surgiam nas falas! Mas, ainda assim recusou ajuda, recusou tratamento, recusou a família...mais um período de recusa. 

O isolamento pela pandemia acentuou o isolamento deles. Ele parou de me responder e eu, por outro lado parei de procurá-lo. Foi tão sacrificante tirá-los da minha vida antes, que eu até me senti "mais leve" de ele me recusar. Tinha uma energia tão pesada em nossa aproximação que nem questionei esse novo "afastamento". Minha mãe conseguia ter um pouco mais de acesso, mas ainda era a duras penas. Eu talvez já estivesse cansada a essa altura, pois não conseguia entender essa recusa. Hoje eu sei - estava já doente de forma muito profunda (corpo, mente e alma), experimentando o pior dos remédios: as escolhas e, com elas, as renúncias!

Nesse mês de março, tão amargo, mas também esperançoso, me deparei com a ansiedade dele num nível preocupante. Eu perguntei algumas vezes como poderia ajudar e, ele até tentou dizer. Ofereci a ajuda que pude. Perguntei também o que ele estava sentindo e a angústia era sua resposta mais comum. Mas, como tirar uma angústia já sedimentada por anos e anos de escolhas, talvez não muito boas? Como fazer parar de doer esse sentimento de culpa provocado pelas escolhas? Como dar carinho e ajuda pra quem não sabe se quer receber seu carinho e sua ajuda?

Foram dias muito difíceis para ele, não tenho a menor dúvida. A ansiedade, a dor foi muito maior que a força para suportar. E, eu entendo isso, eu penso nisso toda hora, pra satisfazer a minha dor de encontrá-lo já sem vida. Eu acho que ele já estava sem vida, sem alegrias há tanto tempo, e sinto muito não ter, de alguma forma, conseguido ajudar.

Sabe que eu ainda tenho raiva as vezes, frustração. Meu peito se aperta e minha mente grita por dentro, um grito que somente eu tenho ouvido, mas eu grito, xingo, aperto as mãos...lembro dele antes e depois...lembro dele às 14h da tarde e às 17h, e grito mais um pouco. As vezes choro. As vezes tenho pena. Leio pra tentar entender, converso com as pessoas e, resolvo mil e uma coisas da minha tia (e dele), mais as minhas coisas, pois minhas filhas continuam aqui crianças, dependendo de mim. E, tudo isso pra não ficar lembrando dessa memória dolorida. 

Já me perguntei também inúmeras vezes "por que eu?", e minha mente fala "porque sim!". Tento encontrar respostas e só concluo que tudo poderia ser pior. Se fosse minha mãe lá, ou minha irmã as marcas seriam piores. Também não sei se dariam conta de "cuidar" da minha tia como eu fiz. Preservá-la. Tem horas que meu peito dói de lembrar que eu precisei ter calma, muita calma, BEM NAQUELA HORA. Que eu dei suporte, conforto e apoio naquele momento, quando na verdade eu queria gritar no meio do rua. Queria entrar lá e bater nele, tamanha era minha raiva....

Não consigo dormir direito, tenho ficado chateada e cansada, mas eu compreendo o processo. Eu também assumi que preciso passar e vou passar por alguns momentos desgostosos e infelizes nessa caminhada. Tenho abraçado e acolhido minha raiva, minha dor, minha frustração, e como é difícil abraçar esses sentimentos todos juntos no mesmo abraço.

Ele se foi e junto a história de uma vida, que em algum momento eu não tive espaço, mas hoje eu (e minha família) temos que ter! A minha tia está aí, pra receber carinho, mesmo depois de todos os "pontapés" que ela nos deu nos últimos anos. E, está recebendo muito amor....pois não acumulamos essas mágoas entre nós. Essas mágoas desses anos todos foram junto com ele. As doenças os deixaram mais doentes - na alma - e, isso facilitou com que houvesse o perdão. Percebo nela, apesar de toda a perda (cognitiva inclusive), que ela sabe que a gente sempre quis o bem e, que a gente sempre quis ajudar e que hoje estamos aqui, não por obrigação, nem por pena, apesar desse sentimento as vezes surgir. Mas, estamos por carinho, caridade, amor ao próximo.....

As vezes ouço uma vozinha me dizendo que poderia ter sido diferente, feito coisas diferentes, e as vezes imagino alguns "E SE"....mas, o encaminhar da vida dele nunca dependeu de outra pessoa senão dele mesmo. Fez as escolhas, assumiu essas escolhas e, não suportou mantê-las. Preciso afirmar isso para mim todos os dias e todas as vezes que falo do assunto. Eu continuarei com sentimentos mistos, mas não condeno a escolha dele. Na minha religião, ele terá outras oportunidades para aprender - não creio que serão fáceis, nenhum pouco - mas ele poderá aprender....e isso já me dá esperanças. Não quero que ele sofra, pois já foi suficiente ver que seu sofrimento o levou, mas desejo que ele possa ter a chance de aprender. Aprender que as pessoas podem ser boas e que podem amá-lo e dar carinho sem nada em troca. É o que estamos oferecendo à minha tia. 

Estou bem triste, mas o amor, carinho e apoio dos que amo, vão me ajudar, como também, poderiam tê-lo ajudado, se ele tivesse permitido e acreditado que era sincera a ajuda e sem julgamentos..... Finalizo com esse recado para você e uma foto que representa a minha melhor memória de você:

Acho que já fazia uns 15 anos que eu não te chamava de tio, até perdi esse laço de carinho com você. Mas saiba Tio que, onde estiver, desejo que esteja bem, que seja bem recebido, bem cuidado, que sua ultima escolha tenha te libertado dessas dores terrestres, mas não te dê outras maiores (que não possa suportar) quando puder voltar. Desejo que você tenha aprendido e continue aprendendo que é aqui nesse plano que evoluímos. Talvez a gente ainda se encontre para outros aprendizados e, até lá, te desejo paz, paz e paz. 

Fique bem!!


Créditos da imagem:
TheAskewBox  - Pixabay




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